Síntese histórica do regime de trabalho e da organização sindical dos trabalhadores portuários
Os trabalhadores que exercem, profissionalmente, a atividade de prestação de trabalho subordinado no âmbito das operações de carga e/ou descarga de navios do comércio, bem como na movimentação de mercadorias no interior das zonas portuárias, são usualmente designados e conhecidos, a nível internacional, por dockers e, internamente, por estivadores.
Trata-se de uma profissão tradicionalmente configurada, não apenas como singular na sua expressão sectorial e funcional, mas também como essencialmente constituída por pessoas a quem, por imperativos de ordem operacional e económica, se exige acentuada disponibilidade para realizar, com diferentes graus de qualificação profissional, as diversificadas tarefas que são requeridas, por um lado, pela movimentação das mercadorias que transitam pelos portos e, por outro, pela conferência dos atos relativos à respetiva entrada e/ou saída e à sua arrumação em recintos ou armazéns das zonas portuárias.
De há muito se reconheceu, por isso, quer a nível oficial, quer a nível privado, que a profissão de trabalhador portuário se diferenciava e distinguia da generalidade das demais profissões, a ponto de lhe ser geralmente associado um estatuto profissional denotador de especificidades carecidas de um tratamento e enquadramento laboral próprios.
A consciência de classe neste sector demorou, porém, a sentir-se, a interiorizar-se, a desenvolver-se e aperfeiçoar-se por parte de quantos foram exercendo a profissão.
Durante muito tempo, verificou-se uma bem conhecida desproporção entre a escassa oferta de trabalho e o volume de trabalhadores à procura de emprego no sector, pelo que mais de metade desta mão-de-obra não obtinha colocação regular, diária ou semanal, em trabalho nos portos, assim se compreendendo e explicando a sua falta de consciência de classe durante anos a fio.
Essa falta de consciência de classe decorria, igualmente, de razões indissociáveis de uma inexistente ou a praticamente inexistente regulamentação normativa, ainda que rudimentar, das condições de acesso à profissão e das condições do exercício dela.
O recrutamento da mão-de-obra portuária começou por fazer-se na rua ou na praça pública, por livre e discricionária escolha de encarregados contratados pelas entidades empregadoras, eles próprios, na generalidade dos casos, sem vínculo contratual estável, os quais a efetuavam, em muitos casos, segundo critérios reveladores do conhecimento pessoal, de relações familiares ou de vizinhança com os candidatos ao trabalho, bem como na base da motivações de interesse pessoal relacionados com generosas oferendas feitas a esses encarregados por parte daqueles que, assim, revelavam o seu propósito de beneficiarem de condições de preferência na sua escolha para o trabalho existente.
A generalidade da mão-de-obra portuária, durante muito tempo designada por “homens da rua”, era constituída por pessoal sem qualquer formação profissional que, na expectativa de alguma oportunidade de escolha para prestação de trabalho, afluía, nos principais portos, às imediações de um edifício, tipo armazém, conhecido por “Casa do Conto”, e aí aguardava a possibilidade de vir a obter colocação em algum dos dias da semana ou do mês.
A prestação de trabalho nos portos regia-se, então e fundamentalmente, por usos e costumes da profissão, sendo pertinente sublinhar que somente em meados do século XX se começaram a fixar algumas condições regulamentares mais detalhadas sobre a prestação de trabalho no sector, essencialmente sobre matéria salarial diária, bem como sobre a delimitação do ou dos períodos de trabalho e também sobre alguns esquemas básicos de recrutamento e de colocação, matérias estas que, no evoluir dos anos, passaram a constar de um enunciado de condições constantes do que veio a designar-se por “Regulamentos do Serviço de Colocação – Conto”.
É de salientar, contudo, que foi ainda dentro da última década do século XIX que os trabalhadores que vinham beneficiando de mais oportunidades de trabalho consideraram justificar-se a sua organização em associações de classe, não só para assim autodefinirem um sistema de recrutamento que lhes desse a garantia da sua colocação profissional tão regular quanto possível – baseada num quadro convencional de prioridades aplicável a quem fosse sócio efetivo ou sócio suplente da associação relativamente a outros candidatos ao trabalho, designados por “homens da rua” – mas também como forma de se afirmarem perante as entidades públicas e privadas do sector, como uma estrutura organizativa que lhes legitimasse iniciativas, de tipo regulamentar, condicionadoras do acesso à profissão e ainda para que, como associações de classe, lhes fosse reconhecida capacidade para entabular conversações destinadas à definição convencional de um futuro estatuto laboral e previdencial para a mão-de-obra do sector.
Estas associações de classe transformaram-se, mais tarde, em Sindicatos nacionais, particularmente estimulados e multiplicados após a instituição do Estado Corporativo (Estado Novo – anos 30).
Remontam, assim, à última década do século XIX as primeiras organizações sindicais criadas no quadro dos condicionalismos genericamente acabados de enunciar.
Impondo a si próprias e aos seus filiados uma forte disciplina nas relações internas e também nas expressões comportamentais inerentes ao desempenho da própria profissão, estas associações de classe assumiram, nessa fase, atributos, iniciativas e funções que extravasavam do foro da mera representatividade dos trabalhadores perante as entidades empregadoras, chamando a si próprias a prática de atos de um efetivo controlo e de uma efetiva gestão da mão- de-obra disponibilizada às entidades empregadoras, quer na sua vertente colocacional e de fiscalização do modo de prestação do trabalho, quer no tocante ao próprio processamento e pagamento das respetivas remunerações, quer no exercício do poder disciplinar incidente sobre eventuais infrações cometidas na prestação do trabalho ou na omissão de deveres com esta relacionados, quer ainda no que respeita à dedução nos salários de contribuições destinadas a associações de socorros mútuos, de carácter social e assistencial, e a fundos de previdência, entretanto criados e geridos pelos Sindicatos a partir da década dos anos 30, vindo, estes últimos, a ser transferidos, mais tarde, para uma Caixa Sindical de Previdência, entretanto instituída em 1949.
O instinto gregário e a própria filosofia inerente ao regime corporativo que, entretanto, já havia sido instituído, viriam a congregar os Sindicatos do maior porto do País numa associação corporativa de nível intermédio, criada no segundo quartel do século XX sob a denominação de União dos Sindicatos de Trabalhadores do Porto de Lisboa, a qual compreendia no seu âmbito cerca de sete mil trabalhadores, sendo 4.000 adstritos à atividade operacional de cargas e descargas e 3.000 à atividade própria dos fragateiros, uns e outros com o respetivo enquadramento sindical nas seguintes organizações associativas das respetivas classes: Sindicato Nacional dos Estivadores, Sindicato Nacional dos Conferentes Marítimos, Sindicato Nacional dos Descarregadores do Porto de Lisboa, Sindicato Nacional dos Descarregadores de Mar e Terra, Sindicato Nacional do Tráfego, Sindicato Nacional dos Fragateiros e Sindicato Nacional dos Apanhadores e Escolhedores de Peixe.
Como se salientou já, os Sindicatos portuários instituídos nos portos de maior expressão nacional remontam a sua existência a finais do século XIX e princípios do século XX.
Outros foram sendo criados, todos com um âmbito geográfico de organização e de representação profissional geralmente confinado a determinado porto.
Na procura constante do reforço da sua capacidade de intervenção junto das entidades oficiais e dos empregadores, os Sindicatos portuários cuidaram, então, de desenvolver, entre si, formas de cooperação e de solidariedade para que o seu poder de influência pudesse ter uma expressão amplificada e evidenciasse uma estrutura organizacional mais forte e mais coesa, que pudesse potenciar a prossecução e a obtenção dos objetivos e das reivindicações que iam articulando uns com os outros.
Um tal desígnio de harmonização e de reforço dos meios e dos objetivos sindicais, viria, mais tarde, a dar origem à criação da FEDERAÇÃO NACIONAL DOS SINDICATOS DE TRABALHADORES PORTUÁRIOS, instituída em assembleia constituinte realizada a 31 de Julho de 1975, na qual foram aprovados os seus Estatutos, os quais passaram a regular a organização, o funcionamento e a prossecução de fins, de ações e de iniciativas de interesse comum para a generalidade dos trabalhadores portuários representados pelos seus Sindicatos locais ou regionais, estando embora vocacionada para aglutinar todos os Sindicatos portuários do País e concertar com eles políticas de progressiva melhoria das condições de trabalho no sector, a par de outras atividades visando a satisfação dos interesses profissionais, laborais, económicos, sociais e culturais da classe.
Esta Federação sucedeu em todos os fins, atribuições e direitos patrimoniais e morais, à referida União dos Sindicatos de Trabalhadores do Porto de Lisboa, com sede inicial na Travessa do Cotovelo, 37, 3.o, direito, em Lisboa, tendo por primeiros Sindicatos nela filiados o Sindicato dos Estivadores do Porto de Lisboa e Centro de Portugal; Sindicato dos Trabalhadores do Tráfego Portuário de Lisboa e Centro de Portugal; Sindicato Vertical dos Trabalhadores Terrestres da Manipulação do Pescado e Afins de Portugal; Sindicato dos Conferentes de Cargas Marítimas de Importação e Exportação dos Distritos de Lisboa e Setúbal; Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes Fluviais, e o Sindicato Nacional dos Estivadores e Ofícios Correlativos do Distrito do Ponta Delgada, que a ela aderiu.
O impacto vocacional da Federação para se assumir como estrutura sindical apta a representar em todo o território nacional os demais Sindicatos já existentes e bem assim os que, entretanto, se foram constituindo a nível dos diferentes portos do Continente e dos Arquipélagos dos Açores e da Madeira, permitiu que os mesmos também viessem a filiar-se nela, tais como o Sindicato Nacional dos Estivadores e Conferentes Marítimos e Fluviais do Distrito do Porto; Sindicato Nacional dos Carregadores e Descarregadores de Terra e Mar do Distrito do Porto; Sindicato Livre dos Lingadores, Apartadores, Barqueiros-Fragateiros e Correlativos do Distrito do Porto; Sindicato dos Estivadores e Barqueiros do Distrito de Setúbal; Sindicato dos Descarregadores de Mar e Terra do Distrito de Setúbal; Sindicato dos Estivadores e Trabalhadores do Porto de Aveiro; Sindicato dos Estivadores, Lingadores e Conferentes do Porto de Viana do Castelo; Sindicato dos Trabalhadores de Mar e Terra de Sines; Sindicato dos Estivadores, Carregadores e Descarregadores de Terra e Mar do Distrito de Faro; Sindicato dos Estivadores, Carregadores e Descarregadores Marítimos do Distrito do Funchal; Sindicato Livre dos Carregadores e Descarregadores de Terra do Porto e Distrito do Funchal; Sindicato Nacional dos Carregadores e Descarregadores do Distrito da Horta; Sindicato dos Estivadores e Ofícios Correlativos do Distrito de Angra do Heroísmo; Sindicato dos Trabalhadores Administrativos da Actividade Portuária e o Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Administrações e Juntas Portuárias.
Foi então, a partir de finais da década de 80, que a Federação promoveu, patrocinou e conduziu os mais importantes processos reivindicativos do regime de trabalho portuário, quer no domínio do emprego de mão-de-obra portuária, quer em matéria de regulamentação do direito a remunerações certas mensais dos trabalhadores efetivos, quer na implementação de esquemas sectoriais de segurança social complementar, quer ainda na consecução de outros direitos e regalias de aplicação comum, designadamente medidas facilitadoras de reformas antecipadas – e até majoradas em matéria de revalorização dos respetivos tempos de exercício da profissão – tendo por base o reconhecimento, por parte dos Governos, da relevância que nesse sentido advinha de fatores e condicionalismos geradores de desgaste prematuro da mão-de-obra portuária proveniente do passado e o seu desajustamento tecnológico face a importantes inovações, progressivamente adotadas na atividade portuária de movimentação das cargas, em consequência da introdução de novos métodos de trabalho, de novos meios de acondicionamento das cargas (contentorização) e de novos equipamentos operacionais aplicados na realização das operações portuárias.
A profissionalização da mão-de-obra portuária, de que é postulado e um bem patente corolário a necessidade de elevar a qualificação técnico-profissional dos trabalhadores para o desempenho eficiente de tarefas e funções cada vez mais especializadas, em obediência a indeclináveis exigências de qualidade e de produtividade tidas como indispensáveis à competitividade dos portos, implicava a revisão profunda da dimensão dos contingentes de trabalhadores afetos ao sector em regime de estabilidade de emprego, a correspondente formação profissional adequada, a disponibilidade garantida dos trabalhadores para o exercício regular da profissão e a sua utilização polivalente em regime de plena ocupação nos períodos de trabalho.
Nesta conformidade, a Federação participou ativamente, quer no território continental, quer nas Regiões Autónomas, em processos de profunda reestruturação sectorial portuária, organizados e ultimados durante os primeiros anos da década de 90, dos quais resultou uma diminuição substancial dos contingentes de trabalhadores afetos aos respetivos portos.
A grupagem e a contentorização das mercadorias, a modernização e o redimensionamento dos meios de transporte terrestre e marítimo, bem como a implementação nos portos de equipamentos de grande porte destinados à movimentação vertical e horizontal das cargas impunham e tornavam indispensável essa reestruturação sectorial, visando não só uma maior eficiência e melhores índices de produtividade no desenvolvimento da atividade portuária, como também a redução substancial de custos emergentes das operações portuárias, o aperfeiçoamento dos próprios modelos tradicionais de gestão e de exploração da atividade portuária e, reflexamente, a competitividade dos portos.
O edifício legislativo e regulamentar do sector portuário foi, assim, sendo reajustado na essência dos reflexos operados pela evolução tecnológica sofrida nesta atividade sectorial, refletindo uma filosofia e uma política sócio-laboral e económica assentes num misto de preocupações voltadas, por um lado, para a estabilidade de emprego dos que se dedicavam profissionalmente à atividade, aos quais se tornava justificado salvaguardar os respetivos direitos e legítimos interesses e, por outro, para a necessidade de dotar esta mão-de-obra de formação e de qualificação profissional consentâneas com as mais modernas exigências operacionais do sector, bem como para a necessidade de um adequado redimensionamento da mão-de-obra efetiva e para a justificabilidade de afetação complementar de mão-de-obra temporária a utilizar no sector, com uma correspondente estrutura administrativa apropriada para gestão racional dos respetivos recursos humanos, implicando também modelos de organização temporal do trabalho que se revelassem eficientes e obviassem a custos improdutivos prejudiciais aos proclamados objetivos da competitividade dos portos.
Admitiram-se, então, por via convencional, regimes de flexibilização laboral, não apenas no domínio da abertura à utilização de trabalhadores contratados em regime de trabalho temporário (trabalhadores eventuais), mas também no tocante à revisão dimensional da afetação dos trabalhadores efetivos a períodos de trabalho, normal e suplementar, e a funções que se revelassem compatíveis com os assinalados objetivos de maior eficiência e de melhor produtividade na realização atempada das operações portuárias.
A Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores Portuários não podia ficar indiferente a esta evolução do status quo sectorial, pelo que, consciente do seu papel e da sua disponibilidade para a participação construtiva nas modificações resultantes da dinâmica própria da alteração das circunstâncias, procurou repensar e readequar a promoção e defesa dos direitos e legítimos interesses dos trabalhadores portuários de forma a prevenir efeitos ou reflexos eventualmente prejudiciais que pudessem efluir dessas alterações no que dissesse respeito essencialmente ao seu regime ocupacional e ao estatuto retributivo dos trabalhadores representados pelos Sindicatos seus filiados.
A coesão sindical mantida durante muitos anos ao redor da Federação veio, entretanto, a sofrer algumas dissidências e fraturas que, em certos casos, tiveram por principal razão de ser divergências a nível de relacionamento pessoal entre dirigentes federativos e dirigentes de alguns Sindicatos nela filiados, bem como conceções diferentes sobre matérias e formas de intervenção respeitantes a questões de âmbito local ou mesmos de âmbito nacional, suscitadas já em pleno século XXI.
A Federação, contudo, prosseguiu as suas atribuições relativamente aos diversos portos do País cujos Sindicatos se mantiveram nela integrados, tais como nos portos de Leixões, de Sines, na generalidade dos portos das Regiões Autónomas do Açores e da Madeira e, mais tarde, também de Aveiro, em 2013.
Porém, o seu poder de influência e de intervenção não se esvaneceu, a despeito das fraturas verificadas na organização sindical portuária do País, tendo tido mesmo, em data recente e com o patrocínio da UGT, um papel de participação importante em processo legislativo de alterações ao regime jurídico do trabalho portuário, no âmbito do qual foram efetuadas diversas reformulações normativas emergentes de condições estabelecidas no Memorando de Entendimento celebrado, por um lado, pelo Governo Português e pelos Partidos de maior expressão eleitoral, e por outro, pelas Instituições Internacionais que participaram no Programa de Assistência Económica e Financeira ao País, aplicável entre de Maio de 2011 e Maio de 2014.
Atualmente, a Federação é constituída pelo Sindicato dos Estivadores, Conferentes e Tráfego dos Portos do Douro e Leixões, pelo Sindicato dos Trabalhadores Portuários de Mar e Terra de Sines, pelo Sindicato dos Estivadores Marítimos do Arquipélago da Madeira, pelo Sindicato dos Trabalhadores Portuários do Grupo Central e Ocidental dos Açores, pelo Sindicato dos Trabalhadores Portuários do Grupo Oriental dos Açores, pelo Sindicato dos Trabalhadores Portuários da Ilha Terceira, pelo Sindicato 2013 dos Trabalhadores dos Terminais Portuários de Aveiro, pelo Sindicato XXI – Associação Sindical dos Trabalhadores Administrativos Técnicos e Operadores dos Terminais de Carga Contentorizada do Porto de Sines, à qual aderiu em 2017 e pelo Sindicato dos Trabalhadores Portuários da Figueira da Foz, em 2019.